sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

PLATAFORMA ORGANIZACIONAL DOS COMUNISTAS LIBERTARIOS



Dielo Truda - 1926
(Makhno, Mett, Arshinov, Valevski, Linski)

A Plataforma Organizacional foi elaborada por anarquistas russos exilados, reagrupados sob o nome de Dielo Truda, objetivando organizar os anarquistas do mundo inteiro em torno do projeto revolucionário.
Este texto foi diretamente inspirado nas lições que tiraram dos eventos revolucionários em que atuaram, e está dividido em quatro partes:

Introdução

É muito significativo que, apesar da força e do caráter indiscutivelmente positivo das idéias libertárias, da nitidez e da integridade das posições anarquistas diante da revolução social; enfim, do heroísmo e dos inúmeros sacrifícios realizados pelos anarquistas na luta pelo comunismo libertário, o movimento anarquista continua fraco e com freqüência tem figurado, na história das luta da classe operária, como um evento menor, um episódio, e não como um fator importante.
Essa contradição, entre o fundamento positivo e incontestável das idéias libertárias e o estado miserável em que vegeta o movimento anarquista, explica-se por uma série de causas, das quais a mais importante, a principal, é a ausência de princípios e práticas organizacionais no movimento anarquista.
Em todos os países, o movimento anarquista é representado por algumas organizações locais, que defendem teorias e práticas contraditórias. Não têm qualquer perspectiva de futuro nem de continuidade da ação militante, habitualmente desaparecem sem deixar o menor traço de sua passagem.
Tal é a situação do anarquismo revolucionário que, se a tomarmos em seu conjunto, só podemos qualificá-la como uma "desorganização geral crônica".
Como a febre amarela, a doença da desorganização apossou-se do organismo do movimento anarquista e o vem minando há dezenas de anos.
Sem dúvida, essa desorganização deriva de alguns defeitos da teoria: notadamente, numa falsa interpretação do princípio da individualidade no anarquismo; este princípio tem sido com muita freqüência confundido com a total ausência de responsabilidade. Os amantes da auto-afirmação, que visam unicamente o prazer pessoal, agarram-se obstinadamente ao estado caótico do movimento anarquista e se referem, para defendê-lo, aos princípios imutáveis do anarquismo e seus mestres. Ora, os princípios imutáveis e os mestres demonstram justamente o contrário.
A dispersão e o desmembramento: eis a ruína. A união estreita é sinal de vida e de desenvolvimento. Esta lei da luta social aplica-se tanto às classes quanto aos partidos.
O anarquismo não é uma bela utopia, tampouco uma abstração filosófica, é um movimento social das massas trabalhadoras. Por este motivo, deve juntar suas forças numa organização geral continuamente ativa, como é exigido pela realidade e a estratégia da luta de classes.
"Estamos convencidos", disse Kropotkin, "de que a formação de uma organização anarquista na Rússia, longe de ser prejudicial para a tarefa revolucionária, é, pelo contrário, desejável e útil no mais alto grau." (prefácio ao texto "A Comuna de Paris", de Bakunin, edição de 1892.)
Bakunin nunca se opôs à idéia de uma organização anarquista geral. Pelo contrário, suas aspirações quanto à organização, assim como sua atividade na primeira internacional, nos dão todo o direito de vê-lo como um partidário ativo exatamente de uma tal organização.
Em geral, a maioria dos militantes ativos do anarquismo combateu toda ação dispersa, e sonhou com um movimento anarquista firmemente ligado pela unidade do objetivo e dos meios.
Durante a revolução russa de 1917, a necessidade de uma organização geral se fez sentir ainda mais intensa e urgentemente. No decorrer dessa revolução, o movimento libertário manifestou o mais alto grau de desmembramento e de confusão. A ausência de uma organização geral fez com que muitos militantes anarquistas atuassem nas fileiras dos bolcheviques. Essa ausência é também a causa de muitos outros militantes, hoje em dia, manterem-se passivos, impedindo todo uso de suas forças, cuja importância é bastante considerável.
É vital nossa necessidade de uma organização que, reunindo a maioria dos participantes do movimento anarquista, estabelecerá no anarquismo uma linha geral tática e política que servirá como guia para todo o movimento.
Já é tempo de o anarquismo sair do pântano da desorganização, colocar um ponto final nas infindáveis vacilações sobre as questões teóricas e táticas mais importantes, de caminhar resolutamente para o objetivo claramente identificado e realizar uma prática coletivamente organizada.
Não basta, porém, constatar a necessidade vital dessa organização. É necessário, também, estabelecer o método de sua criação.
Rejeitamos, como teoricamente e praticamente absurda, a idéia de criar uma organização conforme a receita da "Síntese", isto é: reunindo os representantes das diferentes tendências do anarquismo. Tal organização, tendo incorporado elementos práticos e teóricos heterogêneos, seria apenas um agregado mecânico de indivíduos, cada qual tendo um conceito diferente de todas as questões do movimento anarquista, um agregado que inevitavelmente se desintegraria ao entrar em contato com a realidade.
O método anarco-sindicalista não resolve o problema de organização do anarquismo, porque não dá prioridade a esse problema, interessando-se unicamente em sua penetração e reforço nos meios operários.
Contudo, não se pode fazer grande coisa nesses meios, mesmo tendo alguma inserção neles, quando não existe uma organização anarquista geral.
O único método que soluciona o problema da organização geral, no nosso ponto de vista, é reunir militantes ativos do anarquismo numa base de posições precisas: teóricas, táticas e organizacionais, ou seja: uma base mais ou menos acabada de um programa homogêneo.
A elaboração de tal programa é uma das principais tarefas que a luta social dos últimos anos impôs aos anarquistas. É para a realização desta tarefa que o grupo de anarquistas russos no exílio dedica uma parte importante de seus esforços.
A "Plataforma Organizacional" publicada abaixo representa, em linhas gerais, o esboço de tal programa. Deve ser um primeiro passo na reunião das forças libertárias numa única coletividade revolucionária ativa capaz de lutar: a União Geral dos Anarquistas.
Não nos iludimos, há lacunas na presente Plataforma. Sem dúvida, ela tem limitações como toda e qualquer prática nova de alguma importância. É possível que algumas posições essenciais tenham sido omitidas e outras insuficientemente tratadas ou, então, muito detalhadas ou repetidas. Tudo isso é possível, mas não é o mais importante. O que importa é lançar os fundamentos de uma organização geral. Este é o objetivo que alcançamos, em certa medida, através dessa Plataforma. São tarefas da coletividade, da União Geral dos Anarquistas: aumentá-la, aprofundá-la e, mais tarde, fazer dela um programa definitivo para todo o movimento anarquista.
Noutro plano, também, não nos iludimos. É previsível que vários representantes do auto-intitulado individualismo e do anarquismo caótico nos atacarão, espumando de ódio e nos acusando de trair os princípios anarquistas.
Mas nós sabemos que os elementos individualistas e caóticos misturam, aos "princípios anarquistas" e o "dane-se tudo", a negligência e a total falta de responsabilidade que, em nosso movimento, têm causado ferimentos quase incuráveis. É contra isso que estamos lutando, com toda nossa energia e paixão. Eis o motivo de ignoramos calmamente os ataques vindos desse campo.
Baseamos nossa esperança em outros militantes: naqueles que se mantém fiéis ao anarquismo, que tendo vivido e sofrido a tragédia do movimento anarquista, procuram dolorosamente uma solução.
Ademais, temos grandes esperanças na juventude libertária que, nascida no sopro da revolução russa e situada, desde o começo, no círculo das realidades concretas, exigirá certamente a realização dos princípios organizacionais e construtivos do anarquismo.
Convidamos todas as organizações anarquistas russas, dispersas em vários países do mundo, e também os militantes isolados do anarquismo, a se unirem sobre a base de uma Plataforma comum de organização.
Que esta Plataforma sirva de palavra de ordem revolucionária e ponto de união para todos os militantes do movimento anarquista russo! Que sirva para lançar os fundamentos da União Geral dos Anarquistas!
Viva a Revolução Social dos Trabalhadores do Mundo!
GRUPO DIELO TROUDA
Paris, 20 Junho1926




Seção Geral

1. Luta de classes, seu papel e significado

Não existe uma só humanidade
Existe a humanidade dividida em classes:
Escravos e senhores.
Como todas as que a precederam, a sociedade capitalista e burguesa de nossos tempos não é unida. Ela está dividida em dois campos distintos, diferenciados socialmente por suas respectivas situações e funções: o proletariado (no sentido mais extenso da palavra) e a burguesia.
O destino do proletariado é, e tem sido há séculos, carregar o fardo do trabalho físico e penoso, cujos frutos são colhidos por uma outra classe, que possui a propriedade, a autoridade e os produtos da cultura (ciência, educação, arte etc.): a burguesia. A escravização social e a exploração das massas trabalhadoras formam a base sobre a qual a sociedade moderna se apóia e sem a qual não poderia existir.
Este fato gera uma luta de classes secular, que assume um caráter aberto e violento ou uma aparência de progresso lento e imperceptível, mas orientada sempre, essencialmente, para a transformação da sociedade atual numa sociedade que satisfará as aspirações, necessidades e ao conceito de justiça dos trabalhadores.
Toda a história da humanidade representa, no domínio social, uma cadeia ininterrupta de lutas que as massas trabalhadoras travam por seus direitos, sua liberdade e por uma vida melhor. Esta luta de classes tem sido sempre o principal fator que determina a forma e a estrutura das sociedades.
O regime social e político de todos os países é, antes de tudo, produto da luta de classes. A estrutura de uma sociedade nos mostra a fase em que se encontra a luta de classes. A mínima alteração no curso da luta de classes, na relação de forças entre as classes em luta contínua, engendra mudanças no tecido e na estrutura da sociedade.
Tal é a dimensão geral, universal e o sentido da luta de classes na vida das sociedades de classe.

2. A necessidade de uma violenta revolução social
O princípio de opressão e exploração das massas pela violência constitui a base da sociedade moderna. Todas as manifestações de sua existência: a economia, a política, as relações sociais... baseiam-se na violência de classe, cujos instrumentos são: a autoridade, a polícia, o exército, os tribunais. Tudo nesta sociedade, desde a empresa tomada isoladamente até o conjunto dos aparatos estatais são baluartes na defesa e manutenção do capitalismo. Além de serem pontos de observação permanente dos trabalhadores, servem para ter sempre ao alcance da mão as forças destinadas a reprimir os trabalhadores que ameaçam os fundamentos ou mesmo a tranqüilidade da sociedade atual.
Ao mesmo tempo, o sistema capitalista mantém deliberadamente as massas trabalhadoras num estado de ignorância e estagnação mental, impedindo pela força a elevação de seu nível intelectual e moral, para mais facilmente ludibriá-las.
O progresso da sociedade moderna, a evolução técnica do capital e o aperfeiçoamento de seu regime político fortalecem o poder da classe dominante e dificultam ainda mais a luta contra ela, adiando o momento decisivo da emancipação dos trabalhadores.
A análise da sociedade moderna nos leva à conclusão de que a revolução social violenta é a única via para transformar a sociedade capitalista numa sociedade de trabalhadores livres.

3. O anarquismo e o comunismo libertário
A luta de classes criada pela escravidão dos trabalhadores e suas aspirações de liberdade fez nascer, nos meio dos oprimidos, a idéia do anarquismo: a idéia da negação do sistema social baseado nos princípios de classes e do Estado, e sua substituição por uma sociedade livre e sem estado, autogerida pelos trabalhadores. Portanto, o anarquismo não deriva das reflexões abstratas de um intelectual ou filósofo, mas da luta direta dos trabalhadores contra o capital, das aspirações e necessidades dos trabalhadores, de seus desejos de liberdade e igualdade, os quais se tornam particularmente vivos no melhor período heróico da vida e da luta das massas trabalhadoras.
Eminentes anarquistas, Bakunin, Kropotkin e outros, não inventaram a idéia de anarquismo, mas a descobriram nas massas, apoiados somente na força de seus pensamentos e conhecimentos, para especificá-la e divulgá-la.
O anarquismo não é o resultado de obras pessoais nem objeto de pesquisas individuais.
Similarmente, o anarquismo não é produto de aspirações humanitárias. A humanidade "unida" não existe. Qualquer tentativa de fazer do anarquismo um atributo da humanidade atual, de atribuir-lhe um caráter genericamente humanitário seria uma mentira histórica e social que conduziria inevitavelmente à justificação da ordem atual e de uma nova exploração.
O anarquismo é geralmente humanitário apenas no sentido de que os ideais das massas trabalhadoras tendem a aperfeiçoar as vidas de todos os homens, e do fato de que o destino da humanidade de hoje ou de amanhã é inseparável do destino do trabalho explorado. Se as massas trabalhadoras vencerem, toda a humanidade renascerá. Se não, violência, exploração, escravização e opressão reinarão como nunca antes no mundo...
O nascimento, o desenvolvimento e a realização das idéias anarquistas tem suas origens na vida e na luta das massas trabalhadoras, e estão inseparavelmente ligadas à sua sorte.
O anarquismo quer transformar a sociedade capitalista numa sociedade nova em que os trabalhadores tenham garantido o produto de sua atividade, a liberdade, a independência e a igualdade social e política. Esta nova sociedade será o comunismo libertário. É no comunismo libertário que terão plena expansão a solidariedade social e a individualidade livre, e na qual essas duas idéias se desenvolverão em perfeita harmonia.
O comunismo libertário avalia que o único criador do valor social é o trabalho, físico e intelectual. Consequentemente, só os trabalhadores têm o direito de administrar a vida social e econômica. É por isso que ele não justifica nem admite a existência de classes não trabalhadoras.
Enquanto tiver que coexistir com tais classes, o comunismo libertário não reconhecerá qualquer obrigação em relação a elas. Isto cessará quando as classes não trabalhadoras se decidirem a produzir e quiserem viver na sociedade comunista, sob as mesmas condições de todos os outros, os membros livres da sociedade, gozando dos mesmos direitos e obrigações de todos os membros produtivos.
O comunismo libertário quer suprimir toda exploração e violência, seja contra o indivíduo ou as massas trabalhadoras. Para tanto, estabelece uma base econômica e social que unifica, num conjunto harmonioso, toda a vida econômica e social do país, assegurando a todo indivíduo uma situação igual a dos outros e dando a cada um o máximo bem-estar. Esta base é a apropriação, sob a forma de socialização, de todos os meios e instrumentos de produção (indústria, transporte, terra, matérias-primas etc.) e a construção de organismos econômicos sob os princípios de igualdade e autogestão dos trabalhadores.
Nos limites desta sociedade autogerida pelos trabalhadores, o comunismo libertário estabelece o princípio da igualdade de valor e dos direitos de cada indivíduo (não a individualidade "em geral", nem a individualidade "mística" ou o conceito de individualidade, mas o indivíduo concreto).

4. A negação da democracia
Democracia é uma das formas da sociedade capitalista.
A democracia se baseia na manutenção das duas classes antagônicas da sociedade moderna: a do trabalho e a do capital, e sua colaboração fundada sobre a propriedade privada capitalista. A expressão dessa colaboração é o parlamento e o governo nacional representativo.
Formalmente, a democracia proclama a liberdade de opinião, de imprensa, de associação, enquanto não ameacem os interesses da classe dominante, ou seja, a burguesia.
A democracia mantém intacto o princípio da propriedade privada capitalista. Portanto, dá a burguesia o direito de controlar toda a economia do país, toda a imprensa, educação, ciência, arte, o que de fato, torna a burguesia dona absoluta do país. Possuindo o monopólio da vida econômica, a burguesia pode estabelecer seu poder ilimitado também na esfera política. Efetivamente, o governo representativo e o parlamento nada mais são, nas democracias, do que os órgãos executivos da burguesia.
Consequentemente, a democracia é apenas um dos aspectos da ditadura burguesa, camuflada pelas fórmulas ilusórias das liberdades políticas e garantias democráticas fictícias.

5. A negação da autoridade
Os ideólogos da burguesia definem o Estado como o órgão que regula as complexas relações políticas e sociais entre os homens na sociedade moderna, protegendo a lei e a ordem. Os anarquistas estão em perfeita acordo com esta definição, mas a completam, afirmando que as bases dessa lei e dessa ordem é a escravidão da maioria da população por uma minoria insignificante, e que para tal serve o Estado.
O Estado é, simultaneamente, a violência organizada da burguesia contra os trabalhadores e o sistema de seus órgãos executivos.
Os socialistas de esquerda e, em particular, os bolcheviques, também consideram a autoridade e o Estado burguês como lacaios do capital. Mas sustentam que a autoridade e o Estado podem se tornar, nas mãos dos partidos socialistas, um meio poderoso na luta pela emancipação do proletariado. Por este motivo, esses partidos são a favor de uma autoridade socialista e um Estado proletário. Alguns querem conquistar o poder pacificamente, através do parlamento (os social-democratas); outros, por meios revolucionários (os bolcheviques, os socialistas-revolucionários de esquerda).
O anarquismo considera-os, ambos, fundamentalmente equivocados, nocivos para a tarefa de emancipação do trabalho.
A autoridade está sempre ligada à exploração e à submissão das massas populares. Ela nasce da exploração ou surge no interesse da exploração. A autoridade sem violência e sem exploração perde toda a razão de ser.
O Estado e a autoridade retiram das massas toda iniciativa, matam o espírito criador e a atividade livre, cultivam a psicologia da submissão: a expectativa, a esperança de ascender na hierarquia social, a estúpida confiança nos dirigentes, a ilusão de ser parte da autoridade...
Ora, a emancipação dos trabalhadores só é possível mediante o processo de luta revolucionária direta das massas trabalhadoras e suas organizações de classe contra o sistema capitalista.
A conquista do poder pelos partidos sociais-democratas, por meios pacíficos e sob as condições da ordem atual, não fará avançar um só passo a tarefa de emancipação do trabalho, pelo simples motivo de que o poder real, consequentemente a autoridade real, permanecerá com a burguesia que controla a economia e a política do país. O papel da autoridade socialista se reduzirá a fazer reformas, a melhorar o regime. (Exemplos: Ramsay MacDonald, os partidos sociais-democratas da Alemanha, Suécia, Bélgica, que assumiram o poder na sociedade capitalista.)
Tomar o poder mediante a violência e organizar o autodenominado "Estado proletário" de nada adianta para uma autêntica emancipação do trabalho. O Estado, construído supostamente para a defesa da revolução, termina fatalmente distorcido por suas necessidades e características peculiares, torna-se o objetivo em si mesmo, produz castas específicas e privilegiadas, sobre as quais se apóia. Deste modo, submete as massas pela força e consequentemente restabelece as bases da autoridade capitalista e do Estado capitalista: a opressão e a e exploração das massas pela violência. (Exemplo: "o Estado operário e camponês" dos bolcheviques.)

6. O papel das massas e dos anarquistas na luta e na revolução social
As principais forças da revolução social são a classe operária urbana, as massas camponesas e um setor dos trabalhadores intelectuais.
Nota: enquanto classe explorada e oprimida, da mesma forma que os proletários urbanos e rurais, os trabalhadores intelectuais são relativamente mais desunidos do que os operários e camponeses, graças aos privilégios econômicos concedidos pela burguesia a alguns de seus elementos. Eis por que, no começo da revolução social, apenas a parcela mais desfavorecida dos intelectuais participou ativamente.
A concepção anarquista do papel das massas na revolução social e na construção do socialismo difere, de maneira típica, daquela dos partidos estatistas. Enquanto o bolchevismo e as tendências que lhe são afins consideram que as massas trabalhadoras possuem apenas instintos revolucionários destrutivos, sendo incapazes de uma atividade revolucionária criativa e construtiva – razão pela qual essa atividade deve se concentrar nas mãos dos homens que formam o governo do Estado e o Comitê Central do partido - os anarquistas, pelo contrário, pensam que as massas têm imensas possibilidades criativas e construtivas, e querem a supressão dos obstáculos que impedem a manifestação dessas possibilidades.
Os anarquistas consideram o Estado como seu principal obstáculo, usurpando os direitos das massas e apropriando-se de todas as funções da vida econômica e social. O Estado deve perecer, não "um dia", na sociedade futura, mas agora. Ele deve ser destruído no primeiro dia da vitória dos trabalhadores, e não deve ser reconstituído de forma alguma. Ele será substituído por um sistema federalista de organizações de produção e consumo dos trabalhadores federativamente unidos e auto-administrados. Este sistema exclui tanto a organização da autoridade como a ditadura de um partido, não importa qual seja ele.
A revolução Russa de 1917 revela precisamente essa orientação do processo de emancipação social, na criação de um sistema de conselhos operários e camponeses e comitês de fábrica. Seu lamentável erro foi não ter liquidado, no momento oportuno, a organização do poder estatal: no começo do governo provisório, antes, e o poder bolchevique, depois. Os bolcheviques, aproveitando-se da confiança dos operários e camponeses, reorganizaram o estado burguês de acordo com as circunstâncias do momento e, em seguida, com a ajuda do estado, mataram a atividade criativa das massas, sufocando os sovietes livres e os comitês de fábrica, que representaram o primeiro passo na construção de uma sociedade não estatal, socialista.
A ação dos anarquistas pode ser dividida em dois períodos: um antes e outro durante a revolução. Em ambos, os anarquistas só poderão cumprir seu papel como uma força organizada tendo uma concepção clara dos objetivos da luta e dos meios que levam à realização desses objetivos.
A tarefa fundamental da União Geral dos Anarquistas, no período pré-revolucionário, deve ser a preparação dos operários e camponeses para a revolução social.
Negando a democracia formal (burguesa), a autoridade e o Estado, proclamando a completa emancipação do trabalho, o anarquismo destaca ao máximo os princípios rigorosos da luta de classes. Isto desperta e desenvolve nas massas uma consciência de classe e a intransigência revolucionária da classe.
É precisamente através da intransigência de classe, do antidemocratismo, dos ideais do comunismo anarquista que a educação libertária das massas deve ser feita. Mas a educação somente não basta. É necessária, também, uma certa organização anarquista das massas. Para realizar isso, é preciso atuar em duas direções: de um lado, selecionar e agrupar as forças revolucionárias de operários e camponeses numa base teórica comunista libertária (organizações específicas comunistas libertárias); do outro, reagrupar operários e camponeses revolucionários numa base econômica de produção e consumo (organização produtiva dos operários e camponeses revolucionários, cooperativas de operários e camponeses livres etc.). Os operários e camponeses, organizados numa base de produção e consumo, influenciados pelas posições anarquistas revolucionárias, serão o primeiro ponto de apoio da revolução social.
Quanto mais se tornarem conscientes e organizados à maneira anarquista, desde já, mais os operários e camponeses manifestarão a vontade intransigente e a criatividade libertária no momento da revolução.
Quanto à classe operária na Rússia: é claro que oito anos de ditadura bolchevique, aprisionando as necessidades naturais das massas e sua atividade livre, demonstram, melhor do que qualquer coisa, a verdadeira natureza de todo poder. Mas a classe operária russa desenvolveu enormes possibilidades para a formação de um movimento anarquista de massas. Os militantes anarquistas organizados devem ir imediatamente, com todas forças de que dispõem, ao encontro dessas necessidades e possibilidades, para que não degenerem em reformismo (menchevismo).
Com a mesma urgência, os anarquistas devem aplicar todas as suas forças à organização dos camponeses pobres, esmagados pelo poder estatal, buscando uma saída e desenvolvendo seu imenso potencial revolucionário.
O papel dos anarquistas, no período revolucionário, não pode se limitar à propagação de palavras de ordem e de idéias libertárias. A vida aparece como a arena não só da propagação desta ou daquela concepção, mas, também, no mesmo grau, a arena da luta, da estratégia e das aspirações dessas concepções à direção econômica e social.
Mais do que qualquer outra concepção, o anarquismo deve se tornar a concepção dirigente da revolução social, porque apenas com a base teórica do anarquismo a revolução social poderá conduzir à completa emancipação do trabalho.
A posição dirigente das idéias anarquistas na revolução significa uma orientação anarquista dos eventos. Contudo, não se deve confundir essa força motriz teórica com a liderança política dos partidos estatistas que levam finalmente ao Poder do Estado.
O anarquismo não aspira nem à conquista do poder político, nem à ditadura. Sua principal aspiração é ajudar as massas a trilhar a autêntica via da revolução social e da construção socialista. Mas não basta que sigam a via da revolução social. Também é necessário manter esta orientação da revolução e seus objetivos: substituição da sociedade capitalista pela dos trabalhadores livres. Como a experiência da revolução Russa em 1917 nos mostrou, esta última tarefa está longe de ser fácil, sobretudo por causa dos inúmeros partidos que tentam orientar o movimento numa direção oposta à da revolução social.
Ainda que as massas se expressem profundamente nos movimentos sociais, pelas tendências e princípios anarquistas, essas tendências e princípios permanecem dispersos, se não forem coordenados, e consequentemente não conduzem à organização da potência motriz das idéias libertárias que é necessária para manter, na revolução social, a orientação e os objetivos anarquistas. Esta força motriz teórica pode ser expressa apenas por um coletivo especialmente criado pelas massas para tal fim. Os elementos anarquistas organizados constituem exatamente esse coletivo. Os deveres teóricos e práticos, no momento da revolução, são consideráveis.
Ele deve tomar iniciativas e deflagrar uma participação total em todos os domínios da revolução social: na orientação e no caráter geral da revolução; nas tarefas positivas da revolução na nova produção, na guerra civil e na defesa da revolução, no consumo, na questão agrária etc...
Sobre todas essas questões e numerosas outras, as massas exigem dos anarquistas uma resposta clara e precisa. E, a partir do momento em que os anarquistas proclamam uma concepção da revolução e da estrutura da sociedade, eles são obrigados a dar respostas claras para todas essas questões, a ligar as respostas a uma concepção geral do comunismo libertário e, por fim, dedicar-se totalmente à sua efetiva realização.
Desta forma, a União Geral dos Anarquistas e o movimento anarquista assumem completamente sua função teórica motriz na revolução social.

7. O período transitório
Os partidos políticos entendem, pela expressão "período transitório", uma fase determinada na vida de um povo cujas características são: ruptura com a velha ordem de coisas e instauração de um novo sistema econômico e social, um sistema que, contudo, ainda não representa a completa emancipação dos trabalhadores. Neste sentido, todos os programas mínimos dos partidos políticos socialistas - por exemplo, o programa democrático dos oportunistas socialistas ou o programa da "ditadura do proletariado", dos bolcheviques - são programas do período de transição.
O traço essencial desses programas é que todos consideram impossível, para o momento, a completa realização dos ideais dos trabalhadores: sua independência, sua liberdade e igualdade, e consequentemente preservam toda uma série de instituições do sistema capitalista: o princípio da coerção estatista, propriedade privada dos meios e instrumentos de produção, o trabalho assalariado e diversos outros, de acordo com os objetivos do programa de cada partido.
Os anarquistas sempre foram inimigos de tais programas, considerando que a construção de sistemas transitórios, que mantém os princípios de exploração e coerção das massas, leva necessariamente a um novo crescimento da escravidão.
Ao invés de estabelecer programas políticos mínimos, os anarquistas sempre defenderam a idéia de uma revolução social imediata, que despoja a classe capitalista de seus privilégios econômicos e sociais, e coloca os meios e instrumentos de produção, assim como todas as funções da vida econômica e social, nas mãos dos trabalhadores.
Até agora, os anarquistas têm mantido esta posição.
A idéia de um período transitório, segundo a qual a revolução social deve conduzir não a uma sociedade comunista, mas a um sistema X, conservando elementos do velho sistema, é anti-social em sua essência. Essa idéia ameaça produzir o reforço e o desenvolvimento desses elementos às suas dimensões prévias, e faz retroagir os eventos.
Um exemplo flagrante disso é o regime de "ditadura do proletariado", estabelecido pelos bolcheviques na Rússia.
De acordo com eles, esse regime deveria ser uma etapa transitória para o comunismo total. Na realidade, essa etapa produziu a restauração da sociedade de classes, onde estão, subjugados como antes, os operários e os camponeses pobres.
O centro da gravidade na construção de uma sociedade comunista não consiste na possibilidade de assegurar a cada indivíduo, desde o primeiro dia da revolução, a liberdade ilimitada para satisfazer suas necessidades; mas se afirma na conquista da base social dessa sociedade comunista, estabelecendo os princípios de relações igualitárias entre os indivíduos. Quanto à questão da maior ou menor abundância de bens, não é formulada em nível de princípio, mas como um problema técnico.
O princípio fundamental sobre o qual a nova sociedade será erguida, sobre o qual permanecerá e não deve ser limitado de forma alguma, é o da igualdade das relações, da liberdade e independência dos trabalhadores. Este princípio representa a exigência prioritária e fundamental das massas, exigência pela qual se sublevam e fazem a revolução social.
De duas, uma:
a) A revolução social terminará com a derrota dos trabalhadores. Neste caso, devemos começar de novo a preparar a luta, uma nova ofensiva contra o sistema capitalista.
b) Ou, então, conduzirá à vitória dos trabalhadores. Neste caso, os trabalhadores se apossarão dos meios que lhes permitem sua autogestão: a terra, a produção e as funções sociais, e começarão a construir uma sociedade livre.
Eis o que caracteriza o início da construção de uma sociedade comunista, que, uma vez iniciada, seguirá então continuamente o curso de seu desenvolvimento, fortalecendo-se e se aperfeiçoando sem cessar.
Dessa maneira, a tomada das funções produtivas e sociais pelos trabalhadores traçará uma linha demarcatória entre as épocas estatal e não-estatal.
Se quiser se tornar o porta-voz das massas em luta, a bandeira de toda uma época de revolução social, o anarquismo não deve assimilar, em seu programa, os resíduos da velha ordem, as tendências oportunistas dos sistemas e períodos de transição, nem, tampouco, ocultar seus princípios fundamentais, mas, ao contrário, desenvolvê-los e aplicá-los ao máximo.

8. Anarquismo e sindicalsimo
Consideramos artificial, privada de todo fundamento e de todo sentido, a tendência a opor o comunismo libertário ao sindicalismo e vice-versa.
As noções de anarquismo e sindicalismo pertencem a dois planos diferentes. Enquanto o comunismo, isto é, a sociedade de trabalhadores livres e iguais, é o objetivo da luta anarquista, o sindicalismo, isto é, o movimento operário revolucionário por profissão, é apenas uma das formas da luta revolucionária. Unindo os operários nos locais de produção, o sindicalismo revolucionário, como todo grupo profissional, não possui uma teoria determinada, uma concepção do mundo que responda a todas as complexas questões sociais e políticas da realidade atual. Ele reflete sempre a ideologia de diversos grupos políticos, notadamente aqueles que militam mais intensamente nos sindicatos.
Nossa atitude em relação ao sindicalismo deriva do que já dissemos. Sem nos preocupar aqui em resolver com antecedência a questão do papel dos sindicatos revolucionários depois da revolução, ou seja, se eles serão os organizadores de toda a nova produção ou se eles deixarão esse papel para os conselhos de trabalhadores ou, ainda, os comitês de fábrica, nós entendemos que os anarquistas devem participar no sindicalismo revolucionário como uma das formas do movimento operário revolucionário.
Porém, a questão que se coloca hoje não é se os anarquistas devem ou não participar no sindicalismo revolucionário, mas sim como e com que fim devem participar.
Nós consideramos todo o período anterior, até o dia de hoje, quando os anarquistas entraram no movimento sindicalista na qualidade de militantes e propagandistas individuais, como um período de relações artesanais com o movimento operário profissional.
O anarco-sindicalismo, tentando forçar a introdução das idéias libertárias na ala esquerda do sindicalismo revolucionário, como meio cujo fim é criar sindicatos de tipo anarquista, representa, sob este aspecto, um passo adiante. Mas não vai além do método empírico. Porque o anarco-sindicalismo não liga necessariamente a tarefa de "anarquização" do movimento sindical com a tarefa de organização das forças anarquistas fora do movimento. Ora, é apenas mediante tal ligação que é possível "anarquizar" o sindicalismo revolucionário e impedi-lo de descambar para o oportunismo e o reformismo.
Considerando o sindicalismo apenas como um movimento profissional de trabalhadores, sem uma teoria social e política determinada, e, portanto, incapaz de resolver por si mesmo a questão social, entendemos que a tarefa dos anarquistas no movimento consiste em desenvolver as idéias libertárias, orientando-o num sentido libertário, para transformá-lo numa força ativa da revolução social. É importante nunca esquecermos que, se o sindicalismo não encontrar apoio na teoria anarquista, ele se apoiará, então, concordemos ou não com isto, na ideologia de um partido político estatista qualquer.
A título de exemplo, aliás chocante, podemos citar o sindicalismo francês. Este, no qual brilhavam as táticas e palavras de ordem anarquistas, logo sucumbiu à influência dos bolcheviques, por um lado, e, sobretudo, por outro, à influência dos socialistas oportunistas de direita.
Mas a tarefa dos anarquistas nas fileiras do movimento operário revolucionário não poderá ser cumprida, a não ser que seja estreitamente ligada e conciliada com a atividade da organização anarquista fora do sindicato. Resumindo, devemos entrar nos sindicatos como uma força organizada, responsável pela atuação no sindicato perante a organização geral anarquista e orientados por ela.
Sem nos limitar à criação de sindicatos anarquistas, devemos tentar exercer nossa influência teórica sobre o sindicalismo revolucionário como um todo e em todas as suas formas (a IWW, os sindicatos russos...). Só atingiremos este objetivo, agindo como coletivo anarquista rigorosamente organizado, jamais em pequenos grupos empíricos, que não possuem ligação organizacional nem convergência teórica.
Grupos anarquistas em fábricas e empresas, preocupados em criar sindicatos anarquistas, lutando nos sindicatos revolucionários pela preponderância das idéias libertárias no movimento, grupos orientados em sua ação por uma organização geral anarquista: tais são os sentidos e as formas da atitude dos anarquistas em sua relação com o sindicalismo..

Seção Construtiva


1. Problemas da revolução social: o dia seguinte
O objetivo fundamental dos trabalhadores em luta é a fundação, por meio da revolução, de uma sociedade comunista livre e igualitária, baseada no princípio: "De cada um segundo suas possibilidades, para cada um segundo suas necessidades."
Contudo, essa sociedade não se realizará por si mesma, só pelo poder de uma sublevação social. Sua realização será um processo social-revolucionário, mais ou menos longo, conduzido num determinado caminho pelas forças organizadas do proletariado vitorioso.
Nossa tarefa é, desde já, indicar esse caminho e antecipar os problemas positivos e concretos que os trabalhadores enfrentarão desde o primeiro dia da revolução social, cuja sorte dependerá de sua justa solução.
É óbvio que a construção da nova sociedade será possível apenas depois da vitória dos trabalhadores sobre o capitalismo e seus representantes. Não é possível começar a construção de uma nova economia e de novas relações sociais enquanto o poder do estado que defende o regime de escravização não tiver sido esmagado, enquanto os operários e camponeses não tiverem tomado em suas mãos, durante a revolução, a economia industrial e agrária do país.
Portanto, a primeira tarefa da revolução social é destruir o estado capitalista, expropriar a burguesia e, de modo geral, todos os elementos socialmente privilegiados, dos meios do poder, e implantar, em toda parte, a vontade do proletariado revoltado, expressa nos princípios fundamentais da revolução social. Este aspecto destrutivo e combativo da revolução nada mais fará do que desobstruir o caminho para as tarefas positivas que constituem o sentido e a essência da revolução social
As tarefas são as seguintes:
  1. A solução, no sentido comunista libertário, do problema da produção industrial do país.
  2. A solução similar em relação ao problema agrário.
  3. A solução do problema de consumo.

2. Produção
Levando em conta o fato de que a indústria do país é o resultado dos esforços de inúmeras gerações de trabalhadores e que os diversos ramos da indústria são estreitamente interligados, consideramos toda a função produtiva atual como uma só oficina de produtores, pertencendo totalmente ao conjunto dos trabalhadores, e a ninguém em particular.
O mecanismo produtivo do país é global e pertence a toda a classe operária. Esta tese determina o caráter e a forma da nova produção. Ela será também global, comum, no sentido de que os produtos pertencerão a todos. Tais produtos, quaisquer que sejam, constituirão o fundo geral de provisões dos trabalhadores, do qual todo participante na nova produção receberá tudo que necessita, numa base igual para todos.
O novo sistema de produção suprimirá totalmente o trabalho assalariado e a exploração, sob todas as suas formas, e estabelecerá em seu lugar o princípio da colaboração fraterna e solidária dos trabalhadores.
A classe média, que na sociedade capitalista moderna, exerce funções intermediárias e improdutivas – comércio e outras – assim como a burguesia, deve participar na nova produção, nas mesmas condições de todos os outros trabalhadores. Caso contrário, essas classes se excluirão da sociedade trabalhadora.
Não haverá patrões, sejam empresários, proprietários privados ou burocratas estatais (como no estado bolchevique). As funções organizadoras passarão, na nova produção, para os órgãos administrativos especialmente criados pelas massas operárias: conselhos de operários, comitês de fábrica ou gestão operária das fábricas e empresas. Esses órgãos, interligados na comuna, no distrito e, logo após, em todo o país, formarão as instituições das comunas, dos distritos, em suma, as instituições gerais e federais de gestão da produção. Designados pelas s massas e sempre sob seu controle e influência, todos esses órgãos serão constantemente renovados e realizarão assim a idéia da autogestão pelas massas.
A produção unificada, cujos meios e produtos pertencem a todos, tendo substituído o trabalho assalariado pelo princípio da colaboração fraternal e tendo estabelecido a igualdade de direitos para todos os produtores; a produção dirigida pelos órgãos de gestão operária, eleitos pelas massas; tal é o primeiro passo no caminho para a realização do comunismo libertário.

3 - Consumo
Esse problema surgirá na revolução sob um duplo aspecto:
  1. O princípio da busca dos bens de consumo.
  2. O princípio de sua distribuição.
No que diz respeito à distribuição dos bens de consumo, as soluções dependerão, sobretudo, da quantidade de produtos disponíveis e do princípio da conformidade com o objetivo etc...
A revolução social, encarregando-se da reconstrução de toda ordem social, assume a obrigação de satisfazer as necessidades vitais de todas as pessoas. A única exceção é o grupo dos não-trabalhadores - aqueles que se recusam a tomar parte na nova produção por motivos contra-revolucionários. Mas, em geral, excetuando estes, a satisfação das necessidades de toda a população do território da revolução social é assegurada pela reserva geral de consumo. Se houver escassez, os bens serão divididos de acordo com os princípios da maior urgência: isto é, em primeiro lugar as crianças, os enfermos e as famílias operárias.
Um problema muito mais difícil é o da organização do próprio fundo de consumo.
Sem dúvida, desde o primeiro dia da revolução, as cidades não disporão de todos os produtos necessários para a vida da população. Ao mesmo tempo, os camponeses terão em abundância os produtos que faltam às cidades.
Os comunistas libertários não têm qualquer dúvida quanto ao caráter mútuo das relações entre os trabalhadores da cidade e do campo. Entendemos que a revolução social só pode ser realizada pelos esforços comuns de operários e camponeses. Em conseqüência, a solução do problema de consumo na revolução só pode ser possível mediante a estreita colaboração revolucionária entre essas duas categorias de trabalhadores.
Para estabelecer essa colaboração, a classe operária urbana, tendo assumido a gestão da produção, deve imediatamente suprir as necessidades vitais do campo e se esforçar para fornecer os produtos do consumo diário, os meios e instrumentos para a agricultura coletiva. As medidas de solidariedade tomadas pelos trabalhadores, ao atender as necessidades dos camponeses, suscitará nestes a reciprocidade, enviando coletivamente seus produtos, em primeiro lugar os alimentícios, para as cidades.
Cooperativas de operários e camponeses serão os primeiros órgãos a assegurar as necessidades de alimentação e de provisões para as cidades e os campos. Mais tarde, responsáveis por funções mais importantes e permanentes, notadamente de suprir o que for necessário para manter e desenvolver a vida econômica e social dos operários e camponeses, essas cooperativas serão transformadas em órgãos permanentes de suprimento das cidades e do campo.
A solução do problema de suprimento permanente permitirá ao proletariado criar um estoque permanente, o que produzirá um efeito favorável e decisivo no resultado de toda a nova produção.

4. A terra
Consideramos como principais forças revolucionárias e criadoras na solução da questão agrária os camponeses trabalhadores - aqueles que não exploram o trabalho de outras pessoas - e o proletariado rural. Sua tarefa é fazer a redistribuição da terra, para estabelecer o usufruto coletivo da terra sob princípios comunistas.
Assim como a indústria, a terra, explorada e cultivada por sucessivas gerações de trabalhadores, é o resultado de seus esforços comuns. Ela pertence a todos os trabalhadores e a ninguém em particular. Enquanto propriedade comum e inalienável dos trabalhadores, a terra não poderá ser comprada ou vendida, nem alugada; portanto, ela não poderá servir como meio de exploração do trabalho de outros.
A terra também é uma espécie de oficina popular e comunitária, onde as pessoas produzem seus meios de vida. Mas é uma espécie de oficina onde cada trabalhador (camponês) se acostumou, graças a certas condições históricas, a realizar o seu trabalho sozinho, independente dos outros produtores. Se, na indústria, o método coletivo de trabalho é essencial e o único possível, na agricultura, a maioria dos camponeses trabalha com seus próprios meios.
Consequentemente, quando a terra e os meios de sua exploração são tomados pelos camponeses, sem possibilidade de venda nem de aluguel, a questão das formas de seu usufruto e dos métodos para sua exploração (comunal ou familiar) não encontrará uma solução completa e definitiva, como no setor industrial. No começo, provavelmente, serão utilizados os dois métodos.
Os camponeses revolucionários estabelecerão a forma definitiva de exploração e de usufruto da terra. Nenhuma pressão externa é admissível nesta questão.
Entretanto, considerando que: apenas a sociedade comunista, em cujo nome será feita a revolução social, isenta os trabalhadores de sua condição de escravos e explorados, dando-lhes completa liberdade e igualdade; que os camponeses são a esmagadora maioria da população (quase 85% na Rússia, no período em discussão) e que, consequentemente, o regime agrário que eles estabelecerem será um fator decisivo no destino da revolução; que, enfim, a economia privada na agricultura, assim como na indústria, leva ao comércio, à acumulação, à propriedade privada e à restauração do capital - é nosso dever, desde já, fazer tudo que for necessário para facilitar a solução da questão agrária, num sentido coletivo.
Para tal fim, devemos nos empenhar numa intensa propaganda, entre os camponeses, a favor da economia agrária coletiva. A fundação de uma União Camponesa libertária específica facilitará consideravelmente esta tarefa.
Em função disso, o progresso técnico terá enorme importância, acelerando a evolução da agricultura e a realização do comunismo nas cidades, sobretudo nas indústrias. Se, em suas relações com os camponeses, os operários agirem, não individualmente ou em grupos separados, mas como um imenso coletivo comunista, abrangendo todos os ramos industriais; se, além disso, atenderem as necessidades vitais do campo e se, ao mesmo tempo, abastecerem cada aldeia com os itens de uso diário, ferramentas e máquinas para a exploração coletiva das terras, certamente atrairão os camponeses para o comunismo na agricultura.

5. A defesa da revolução
A questão da defesa da revolução está ligada ao problema do "primeiro dia". Basicamente, o modo mais possante de defesa da revolução é a solução feliz para seus problemas positivos: a produção, o consumo e a terra. Se esses problemas forem justamente solucionados, nenhuma força contra-revolucionária será capaz de alterar ou desequilibrar a sociedade livre dos trabalhadores. Contudo, os trabalhadores terão que lutar duramente contra os inimigos da revolução, para defender e manter sua existência concreta.
A revolução social, que ameaça os privilégios e a existência das classes não-trabalhadoras da sociedade, provocará inevitavelmente, da parte dessas classes, uma resistência desesperada que tomará a forma de uma feroz guerra civil.
Como a experiência russa mostrou, tal guerra civil durará alguns anos.
Por mais felizes que sejam os primeiros passos dos trabalhadores, no início da revolução, a classe dominante será capaz de resistir por um longo tempo. Durante muitos anos, ela desencadeará ofensivas contra a revolução, tentará reconquistar o poder e os privilégios que lhe foram arrebatados.
Um enorme exército, estratégia e técnicas militares, capital - tudo será lançado contra os trabalhadores vitoriosos.
Para preservar as conquistas da revolução, os trabalhadores devem criar órgãos de defesa da revolução, contrapondo-se à ofensiva da reação com uma força combatente à altura da tarefa. Nos primeiros dias da revolução, esta força será constituída por todos os operários e camponeses armados. Mas essa força armada espontânea será eficiente apenas durante os primeiros dias, quando a guerra civil ainda não alcançou seu clímax e os dois partidos em luta não criaram organizações militares regularmente constituídas.
Na revolução social, o momento mais crítico não é o da supressão da autoridade, mas o seguinte, quando as forças do regime derrotado lançam uma ofensiva geral contra os trabalhadores e o importante é salvaguardar as conquistas alcançadas. O caráter dessa ofensiva, assim como a técnica e o desenvolvimento da guerra civil, obrigarão os trabalhadores a criar contingentes revolucionários militares determinados. A essência e os princípios fundamentais dessas formações devem ser decididos antecipadamente. Negando os métodos estatistas e autoritários para governar as massas, também rechaçamos o método estatista de organizar as forças militares dos trabalhadores, ou seja, o princípio de um exército estatista, fundado sobre o serviço militar obrigatório. É o princípio do voluntariado, de acordo com as posições fundamentais do comunismo libertário, que deve ser a base das formações militares dos trabalhadores. Os destacamentos de guerrilheiros insurgentes, operários e camponeses, que conduziram a ação militar na revolução russa, podem ser citados como exemplos de tais formações.
Porém, o voluntariado e a ação guerrilheira não devem ser compreendidos estritamente, ou seja, como uma luta de destacamentos operários e camponeses contra o inimigo local, sem estar coordenados por um plano geral de operação e cada um agindo por sua conta e risco. A ação e as táticas dos guerrilheiros deverão ser orientadas, em seu completo desenvolvimento, por uma estratégia revolucionária comum.
Como em todas as guerras, a guerra civil não pode ser realizada com sucesso pelos trabalhadores, a não ser que eles apliquem os dois princípios fundamentais de toda ação militar: unidade do plano de operações e unidade de comando. O momento mais crítico da revolução será quando a burguesia lançar contra a revolução suas forças organizadas. Então, os trabalhadores serão obrigados a adotar esses princípios de estratégia militar.
Desta maneira, tendo em vista as necessidades da estratégia militar e a estratégia dos contra-revolucionários, as forças armadas da revolução deverão fundir-se num exército revolucionário geral, tendo um comando e um plano de operações comuns.
Os princípios abaixo formam a base desse exército:
  1. caráter de classe do exército;
  2. voluntariado (toda coerção será completamente excluída da tarefa de defesa da revolução);
  3. livre disciplina (autodisciplina) revolucionária: o voluntariado e a autodisciplina revolucionária são totalmente compatíveis, e tornarão o exército da revolução moralmente mais forte do que qualquer exército estatal;
  4. total submissão do exército revolucionário às massas operárias e camponesas, representadas pelas organizações de operários e camponeses de todo o país, situados pelas massas na direção da vida econômica e social.
Dito de outra maneira: o órgão de defesa da revolução encarregado de combater a contra-revolução, nas frentes militares externas assim como na guerra civil (conspirações burguesas, preparativos de ações contra-revolucionárias) será totalmente controlado pelas organizações produtivas de operários e camponeses, ás quais se submeterá e das quais receberá a orientação política.
Atenção: Estando tudo construído conforme princípios comunistas libertários determinados, o exército não deve ser considerado um elemento de princípio. Ele nada mais é do que a aplicação da estratégia militar na revolução, uma medida estratégica à qual os trabalhadores são forçados pelo processo da guerra civil. Mas esta medida exige atenção, desde já, deve ser cuidadosamente estudada para evitar, na execução das tarefas de proteção e defesa da revolução, toda demora irreparável, pois tais hesitações, durante a guerra civil poderão ser desastrosos para a revolução social.

Seção Organizativa


As posições gerais construtivas, acima expostas, constituem a plataforma de organização das forças revolucionárias do anarquismo.
Esta plataforma, contendo uma orientação teórica e tática definitiva, aparece como o mínimo necessário e urgente para todos os militantes do movimento anarquista organizado.
Sua tarefa é agrupar, em torno de si, todos os elementos saudáveis do movimento anarquista numa só organização geral, permanentemente ativa: a União Geral dos Anarquistas. As forças de todos os militantes ativos do anarquismo deverá ser orientada para a criação desta organização.
Os princípios fundamentais de organização da União Geral dos Anarquistas serão os seguintes:
1. Unidade Teórica
A teoria representa a força que dirige a atividade das pessoas e das organizações por um caminho definido e para um objetivo determinado. Naturalmente, a teoria deve ser comum para todas as pessoas e organizações que aderirem à União Geral. Toda atividade da União Geral Anarquista, tanto em caráter geral como em particular, deve estar em perfeito acordo com os princípios teóricos da União.
2. Unidade Tática ou Método Coletivo de Ação
Os métodos táticos empregados por membros e grupos da União também devem ser unitários, ou seja, estar rigorosamente de acordo entre si e com a teoria e tática geral da União.
Uma linha tática comum no movimento tem importância decisiva para a existência da organização e de todo o movimento, prevenindo-o contra os efeitos nefastos de várias táticas que se neutralizam mutuamente, e concentrando todas as suas forças, orienta-o numa direção comum que conduz a um objetivo determinado.
3. Responsabilidade Coletiva
A prática que consiste em agir em nome da responsabilidade pessoal deve ser condenada e rejeitada no movimento anarquista.
Os domínios da vida revolucionária, social e política, são antes de tudo coletivos por sua natureza. A atividade social revolucionária não pode se basear na responsabilidade pessoal dos militantes isolados.
O órgão executivo do movimento geral anarquista, a União Anarquista, contrapondo-se decisivamente à tática irresponsável do individualismo, introduz em suas fileiras o princípio da responsabilidade coletiva: toda a União deverá ser responsável pela atividade revolucionária e política de cada membro; da mesma forma, cada membro será responsável pela atividade revolucionária e política da União como um todo.
4. Federalismo
O Anarquismo sempre negou a organização centralizada, na vida social das massas quanto e em sua ação política. O sistema de centralização atrofia o espírito crítico, a iniciativa e a independência de cada indivíduo, e promove a cega submissão das massas ao 'centro'. As conseqüências, naturais e inevitáveis, desse sistema são a escravidão e a mecanização da vida social e da vida dos grupos.
Contra o centralismo, o anarquismo sempre professou e defendeu o princípio do federalismo, que harmoniza a independência e a iniciativa dos indivíduos ou da organização com o interesse da causa comum.
Conciliando a idéia de independência e a plenitude dos direitos de cada indivíduo com os interesses e necessidades sociais, o federalismo incentiva toda manifestação saudável das faculdades de cada indivíduo.
Mas, com freqüência, o princípio federalista tem sido deformado nas fileiras anarquistas: tem sido compreendido como o direito, sobretudo, da manifestação do 'ego', sem a obrigação de cumprir seus deveres na organização.
Essa interpretação falsa desorganizou nosso movimento no passado. É tempo de acabar com isso, de modo forte e irreversível.
Federalismo significa livre entendimento, entre indivíduos e organizações, na ação coletiva orientada para o objetivo comum.
Ora, tal entendimento e a união federativa baseada nela se tornarão realidade, em vez de ficção e ilusão, somente na indispensável condição de que todos os que participam do entendimento e na União cumpram os deveres assumidos, em conformidade com as decisões tomadas em comum.
Numa construção social, por mais vasta que sejam as bases federalistas sobre as quais se funda, não poderá haver direitos sem obrigações, nem decisões sem a respectiva execução. Isto é ainda menos admissível numa organização anarquista, que assume exclusivamente obrigações quanto aos trabalhadores e a revolução social.
Por conseguinte, o tipo federalista de organização anarquista, reconhecendo os direitos (quais sejam: independência, opinião livre, iniciativa e liberdade individual) de cada membro, exige que cada membro cumpra seus deveres organizacionais determinados, assim como a rigorosa execução das decisões tomadas em comum.
Unicamente sob esta condição, o princípio federalista viverá, e a organização anarquista funcionará corretamente, dirigindo-se para um objetivo definido.
A idéia da União Geral dos Anarquistas põe o problema da coordenação e da aprovação das atividades de todas as forças do movimento anarquista.
Cada organização aderente à União representa uma célula vital, parte de um organismo comum. Cada célula terá seu secretariado, executando e orientando teoricamente sua própria atividade política e técnica.
Tendo em vista a coordenação da atividade de todas as organizações aderentes à União, um órgão especial será criado: o Comitê Executivo da União. Este último será responsável pelas seguintes funções: execução das decisões tomadas pela União; orientação teórica e organizacional da atividade das organizações isoladas, de acordo com as opiniões teóricas e a linha tática geral da União; supervisão do estado geral do movimento; manutenção das ligações práticas e organizacionais entre todas as organizações na União, e com outras organizações.
Os direitos e obrigações, as tarefas práticas do comitê executivo são fixadas pelo Congresso da União.
A União Geral dos Anarquistas possui um objetivo determinado e concreto. Em nome do sucesso da revolução social, ela deve antes de tudo se apoiar sobre os elementos mais revolucionários e radicais dentre os operários e camponeses, assimilando-os.
Proclamando a revolução social e, além disso, sendo uma organização antiautoritária que luta pela abolição imediata da sociedade de classes, a União Geral dos Anarquistas se apóia igualmente sobre duas classes fundamentais da sociedade atual: os operários e os camponeses. A União se empenhará de modo igual na luta pela emancipação dessas duas classes.
Quanto aos sindicatos, às organizações operárias e revolucionárias nas cidades, a União Geral dos Anarquistas intensificará seus esforços para se tornar seu destacamento de vanguarda e guia teórico.
Ela assumirá as mesmas tarefas na relação com as massas camponesas exploradas. Como pontos de apoio, desempenhando o papel dos sindicatos revolucionários para os operários, a União se esforçará para criar uma rede de organizações econômicas camponesas revolucionárias e, além disso, um sindicato de camponeses específico, fundado sobre princípios antiautoritários.
Nascida do coração da massa trabalhadora, a União Geral dos Anarquistas deve participar de todas as manifestações de sua vida, contribuindo, por toda a parte e sempre, com o espírito de organização, perseverança, atividade e ofensiva.
Somente assim, ela cumprirá sua tarefa, sua missão teórica e histórica na revolução social dos trabalhadores, e se tornar a iniciativa organizada de seu processo emancipador.
Nestor Makhno, Ida Mett, Piotr Archinov, Valevsky, Linsky
Dielo Truda (Causa Operária) - França, 1926.

NOSSA ORGANIZAÇÃO



Nestor Makhno

A atual situação enfrentada pelo proletariado mundial exige uma tensão máxima do pensamento e da energia dos anarquistas revolucionários, para esclarecer as questões mais importantes.
Nossos camaradas, que desempenharam um papel ativo na revolução russa e continuam fiéis às suas convicções, sabem de que maneira funesta se fez sentir, em nosso movimento, a ausência de uma sólida organização. Esses camaradas estão bem situados para ser particularmente úteis na tarefa de unificação atualmente empreendida. Suponho que não lhes passou despercebido que o anarquismo foi um fator de insurreição nas massas trabalhadoras revolucionárias, na Rússia e na Ucrânia, incitando-as à luta por toda parte. Contudo, a ausência de uma grande organização específica, que contraponha suas forças vivas aos inimigos da revolução, tornou os anarquistas incapazes de assumir uma função organizativa. A tarefa libertária na revolução sofreu as pesadas conseqüências dessa incapacidade. Conscientes dessa limitação, os anarquistas russos e ucranianos não devem permitir que tal fato se repita. A lição do passado é demasiado penosa e, por não a terem esquecido, eles devem ser os primeiros a dar o exemplo de coesão de suas forças. Como? Criando uma organização que possa cumprir as tarefas do anarquismo, não somente no momento de preparar a revolução social, mas igualmente depois. Uma tal organização deve unir todas as forças revolucionárias do anarquismo, e se ocupar imediatamente da preparação das massas para a revolução social e para a luta pela realização da sociedade anarquista.
Se bem que a maioria dos anarquistas reconhece a necessidade de uma tal organização, é lamentável constatar que são poucos os que se preocupam com a seriedade e a constância indispensáveis.
Neste momento, os acontecimentos se precipitam em toda Europa, inclusive na Rússia, prisioneira dos bolcheviques. Está próximo o dia em que será necessário participarmos ativamente dos acontecimentos. Se nos apresentarmos outra vez sem estarmos organizados, previamente e de maneira adequada, seremos novamente incapazes de impedir que os acontecimentos evoluam no turbilhão dos sistemas estatais.
O anarquismo se insere e vive concretamente por toda a parte onde há vida humana. Em contrapartida, ele não se torna compreensível para todos, a não ser onde e quando existem os propagandistas e os militantes que romperam sincera e inteiramente com a psicologia de submissão desta época, eis por que são ferozmente perseguidos. Esses militantes agem de acordo com suas convicções, desinteressadamente, sem medo de descobrir, em seu processo de desenvolvimento, aspectos desconhecidos, para assimilar, ao fim e ao cabo, o que se fizer necessário para a vitória contra o espírito de submissão.
Duas teses decorrem do que acima foi dito:
  • a primeira, é que o anarquismo conhece expressões e manifestações diversas, mas conserva uma perfeita integridade em sua essência.
  • a segunda, é que o anarquismo é naturalmente revolucionário e, na luta contra seus inimigos, só pode adotar métodos revolucionários.
No decorrer de seu combate revolucionário, o anarquismo não somente derruba os governos e suprime suas leis, mas se ocupa também da sociedade em que nasceu, de seus valores, seus costumes e sua "moral", o que lhe vale ser cada vez mais compreendido e assimilado pela maioria oprimida da humanidade.
Tudo isso nos convence de que o anarquismo não pode continuar aprisionado nos limites de um pensamento marginal e reivindicado unicamente por uns poucos grupelhos, em suas ações isoladas. Sua influência natural sobre a mentalidade dos grupos humanos em luta é mais do que evidente. Para que esta influência seja assimilada de modo consciente, ele deve doravante se munir de novos meios e iniciar desde já o caminho das práticas sociais.
Dielo Trouda n.º 4, setembro de 1925.

ANARQUISMO E NOSSOS TEMPOS


Nestor Makhno

O anarquismo não é uma doutrina que trata meramente sobre a vida social do Homem, no sentido limitado com que o termo é indicado nos dicionários políticos, e as vezes, nas conferências, por parte de nossos oradores propagandistas. É, muito mais, um ensino que envolve a toda existência do Homem como um indivíduo completo.
No curso da elaboração da imagem plena do mundo, o anarquismo tem tido uma tarefa muito específica: abarcar ao mundo na sua totalidade, varrendo todo tipo de obstáculos, presentes e futuros, que podem ser postos pela ciência e pela tecnologia capitalista e burguesa. Isto, com o fim de suprir ao Homem com uma explicação mais exaustiva possível da existência neste mundo e de fazer o melhor possível frente a todos os problemas que o homem deva confrontar: esta aproximação, deve ajuda-lo a internalizar uma consciência do anarquismo que lhe é naturalmente inerente - isto, ao menos, é o que suponho - visto que este depara-se continuamente a manifestações parciais do anarquismo.
É sobre a base da vontade do indivíduo, que o ensino libertário pode ser encarnado na vida real e limpar o terreno o qual ajuda o Homem a desfazer-se de todo espírito de submissão de seu seio.
Quando se desenvolve, o anarquismo não conhece ataduras. Não reconhece barreiras as quais deva confinar-se e ajustar-se. Tal qual a existência humana, não tem fórmulas definitivas para suas aspirações e objetivos.
Tal como eu o vejo, o direito de cada Homem a desfrutar de sua total liberdade, como o definem os postulados teóricos do anarquismo, podem somente ser, para ele, um meio com o qual irá lograr um florescimento mais ou menos completo, entretanto continua-se em desenvolvimento. Havendo desaparecido do Homem tal espírito de submissão que tem sido artificialmente instalado nele, o anarquismo se transforma então na idéia força da sociedade humana em marcha até o cumprimento de todas suas metas.
Em nossos tempos, o anarquismo ainda é visto como teoricamente débil: mas ainda, há aqueles que argumentam que é interpretado freqüentemente de forma errônea. Sem obstáculos, seus expoentes tem muito o que dizer a respeito: muitos vão constantemente propagando-o, militando ativamente e, as vezes, queixando-se de sua falta de êxito (imagino, neste último caso, que esta atitude é propiciada pelo fracasso para demarcar, através da investigação, o engenho social vital para anarquismo se se quer ganhar a ocasião na sociedade contemporânea)...
Todos, e cada um de nós, estamos de acordo que a coesão entre todos os anarquistas ativos, na forma de uma atividade coletiva séria, é o que se necessita. Seria, então, algo muito surpreendente que os oponentes de tal União em nossas fileiras o reconheçam. A questão a resolver, se relaciona apenas com o formato organizativo que tal União de anarquistas deve assumir.
Pessoalmente, me inclino a aceitar como forma organizativa mais apropriada e mais necessária, a que se apresenta como uma União de anarquistas, construída sobre a base dos princípios da disciplina coletiva e da direção concentrada de todas as forças anarquistas! Assim, todas as organizações que se afiliem a ela, estariam interconectadas, não só por uma comunidade de objetivos sociais revolucionários, mas também por um acordo comum aos meios que levam até este fim.
As atividades das organizações locais podem ser adaptadas, tanto quanto seja possível, para ajustar-se as condições locais; sem problemas, tais atividades devem, indefectivelmente, ser coerentes com os esquemas do conjunto da prática organizativa da União de anarquistas de todo o país.
Se esta União se descreve a si mesma como um partido ou como outra coisa, é um assunto de importância meramente secundária. O ponto essencial, é que deve focalizar todas as forças anarquistas sobre uma prática uniforme e comum contra o inimigo, levando adiante a luta pelos direitos dos explorados, a implementação da revolução social e o estabelecimento da sociedade anarquista!
Dielo Trouda, nº6, novembro de 1925, pg. 6-7

SOBRE A DISCIPLINA REVOLUCIONÁRIA


Nestor Makhno


Alguns camaradas me fizeram a seguinte pergunta: como é que eu entendo a disciplina revolucionária? Vou lhes responder.
Compreendo a disciplina revolucionária como uma autodisciplina do indivíduo, estabelecida num coletivo atuante, de modo igual para todos, e rigorosamente elaborada.
Ela deve ser a linha de conduta responsável dos membros desse coletivo, induzindo a um acordo estrito entre sua prática e sua teoria.
Sem disciplina na organização, é impossível empreender qualquer ação revolucionária séria. Sem disciplina, a vanguarda revolucionária não pode existir, porque então ela se encontrará em completa desunião prática e será incapaz de formular as tarefas do momento, de cumprir o papel de iniciador que dela esperam as massas.
Faço repousar esta questão sobre a observação e a experiência de uma prática revolucionária conseqüente. De minha parte, baseio-me sobre a experiência da revolução russa, que tinha um conteúdo tipicamente libertário sob muitos aspectos.
Se os anarquistas estivessem firmemente ligados no plano organizativo e tivessem observado, em suas ações, uma disciplina bem determinada, não teriam jamais sofrido uma tal derrota. Mas, porque os anarquistas "de todo estilo e de todas as tendências" não representavam, mesmo em seus grupos específicos, um coletivo homogêneo, com uma disciplina de ação bem definida, não puderam suportar o exame político e estratégico que lhes impuseram as circunstâncias revolucionárias.
A desorganização conduziu os anarquistas à impotência política, dividindo-os em duas categorias:
  • a primeira foi a dos que se dedicaram à sistemática ocupação das residências burguesas, nas quais se alojaram e viveram para o seu bem-estar. Eram os que eu chamo de turistas, os diversos anarquistas que vão de cidade em cidade, na esperança de encontrar um lugar onde permanecer algum tempo, espreguiçando-se e desfrutando o máximo possível de conforto e prazer.
  • a segunda se compunha dos que romperam todos os laços honestos com o anarquismo (ainda que alguns deles, na URSS, façam-se passar agora pelos únicos representantes do anarquismo revolucionário) e se lançaram sobre os cargos oferecidos pelos bolcheviques, no momento mesmo em que o poder fuzilava os anarquistas que permaneciam fiéis ao seu posto de revolucionários e denunciaram a traição dos bolcheviques.
Diante desses fatos, compreende-se facilmente porque eu não posso continuar indiferente ao estado de despreocupação e negligência que existem atualmente em nossos meios.
De uma parte, isso impede a criação de um coletivo libertário coerente, que permitirá aos anarquistas ocuparem o lugar que lhes cabe na revolução. Doutra parte, isso permite contentar-se com belas frases e grandes pensamentos, omitindo-se no momento de agir.
Eis porque eu falo de uma organização libertária apoiada sobre o princípio duma disciplina fraternal. Uma tal organização conduzirá ao acordo indispensável de todas as forças vivas do anarquismo revolucionário e o ajudará a ocupar seu lugar na luta do Trabalho contra o Capital.
Por esse meio, as idéias libertárias certamente ganharão as massas e não se empobrecerão. Somente os fanfarrões consumados e irresponsáveis fugirão diante de uma tal estrutura organizacional.
A responsabilidade e a disciplina organizacionais não devem horrorizar: elas são companheiras de viagem da prática do anarquismo social. 
Dielo Trouda, n°s 7-8, dezembro de 1925 – janeiro de 1926.